No Shopping Estação, aquele que fica no centro de Curitiba, tem um trenzinho no qual as crianças podem andar. Sempre que vou na praça de alimentação, jantar depois do trabalho e antes da faculdade, fico feliz ao ver ele passando. Provavelmente aquela criança está tendo o dia da vida dela. Ver isso me faz esquecer por alguns segundos que eu ganho pouco, que estou sobrecarregada, do quanto me sinto longe de casa. Tenho a mesma sensação passando em frente a loja de brinquedos, principalmente ao ver ursinhos.
Às vezes quando eu tenho um dia muito difícil, eu desejo voltar para quando eu também podia ser uma criança andando em um trenzinho. Ou apenas retroceder para poder brincar com meus ursinhos outra vez. Lá na casa que eu morava na fazenda, com paredes num rosa desbotado. Tinha um pé de manga que eu costumava subir e sapos apareciam na varanda de noite. Pedras rodeavam a casa, e eu costumava atirar elas na piscina. Havia um ipê amarelo gigante e um tucano costumava aparecer entre os galhos. Pastos verdes rodeavam a sede, onde eu corria atrás dos bezerros, brincava com os cachorros ou montava na minha égua Samanta. Meu pai costumava me levar a cavalo até a área florestal depois do pasto, e nós tínhamos o costume de atravessar um pequeno riacho que na época parecia um grande rio. De vez em quando as vacas conseguiam passar o mata-burro e entrar para dentro dos portão pro jardim de casa, e eu morria de medo. Achava que elas iriam ter um acesso de fúria e me atropelar ou me perfurar com os chifres.
Tudo parece o cenário perfeito para passar a infância. Mas sempre que lembro o quanto era bonito, eu também recordo que a trilha sonora daquela época eram gritos de brigas por motivos diversos. Exatamente a mesma de hoje. Lembro de todas as coisas que eu vi e escutei, dos enfeites e taças da minha mãe arremessados e estilhaçados no chão, da dúvida latente se eu deveria ou não chamar a polícia. Quando penso no quanto eu amava brincar de veterinário com meus ursos, lembro que eu perdi meu ursinho favorito, chamado Bianca, num táxi em Fortaleza. Nunca mais vi sua figura encardida por ter sido levada a tantos lugares, ou senti o cheiro artificial de filhote que veio impregnado nela. Sempre tive dó de objetos inanimados, e quando mais nova, era pior. Fiquei pensando no quanto ela iria ficar triste, se sentindo abandonada e assustada, quando na verdade era eu que estava me sentindo assim por perdê-la.
Querendo ou não, ao me lembrar da infância, também lembro que todas aquelas vacas foram vendidas quando falimos, a maioria pro abatedouro, e morreram assustada. Minhas éguas, se vivas, pertencem a alguém que não se importa se elas gostam de comer torrões de açúcar ou se o joelho esquerdo está falhando. O jardim ao redor de casa não é cuidado por ninguém e a grama cresce irregularmente. As paredes não são mais rosa desbotado, provavelmente não tem cor nenhuma. Meus ursos não existem mais. Meus animais não existem mais. Eu posso desejar voltar pra lá, pra uma memória distorcida de que naquela época estava tudo bem, mas a casa da minha infância marcada pela violência, velada ou não, também não existe mais - igual todas as outras coisas que um dia tentaram e falharam em me trazer conforto ou segurança.
Esse final de semana voltei pra minha cidade natal. Fui no bar que sempre costumo ir. Quando abriu, era temático de Beatles e tocava covers de rock. A decoração dessa época ainda está por lá. O lugar onde pegamos as bebidas é um submarino amarelo. Hoje em dia, sua programação foi reformulada e os gays gostaram. Eu inclusa. Eles costumam fazer especiais de música pop. Dessa vez o tema era anos 2000, com um destaque pra Rebeldes. Eu não gosto muito, então fiquei no terraço. Talvez pela reforma recente expandindo a parte de cima, percebi pela primeira vez que é possível ver dali o outdoor do Chiquinho do topo de um prédio.
Desde que eu nasci, minha avó morava num prédio do lado da praça do centro. Aquele lugar esteve presente na minha vida desde sempre. As bugigangas, as bancas de revista que meu avô me levava, a fonte que hoje em dia está incrivelmente limpa, as migalhas de bolacha dada para os pombos. O Praça Shopping antes era até mesmo um cinema onde meu vô trabalhava - ver a máquina de cinema antiga como memória do passado daquela galeria é como visitar o túmulo dele. Depois que entrei na adolescência, meus pais venderam a fazenda, e passei a realmente morar no centro. E hoje, toda vez que me imagino em casa, não imagino a casa que meus pais moram atualmente - não, eu imagino aquele apartamento com chão de madeira escura na esquina do sebo.
Eu demorei para começar a tomar remédio para dormir, apesar das minhas dificuldades em cair no sono. Naquelas noites intermináveis de insônia, eu via da janela aberta do meu quarto o outdoor do Chiquinho Sorvetes. Ele brilhava entre as poucas luzes acesas na cidade àquela hora da noite. Foi olhando pra essa visão que eu compus minhas primeiras músicas. Eu ficava sendo assombrada pela minha ambição e projeções do meu futuro, desejando uma vida em São Paulo repleta de luzes e de prédios cheios de pessoas que poderiam ouvir minhas canções.
Acho que sempre imagino aquele prédio como meu ideal de casa porque eu construí um mundo naquele quarto. Eu lotei minha prateleira de livros, de quadros que eu mesma pintei, de objetos aleatórios que ganhei ou coletei por ali. Eu me aproximei dos meus amigos nas noites que eu os convidava pra ir em casa, assistir filmes ruins, cozinhar receitas de macarrão ou tocar violão na varanda. Naquela época, frequentemente combinavámos algo no centro, andávamos pelas lojas buscando fantasias para Halloween ou o que seja. Depois ficávamos lá embaixo, na parte da piscina conversando e levando rajadas de vento. Foi no salão de festas que comecei a beber, e os bares ali ao redor foram os primeiros que frequentei. E foi na sauna abandonada do Edifício Amazonas que eu gravei e produzi minha primeira música, Limiar.
Agora, eu moro a vinte horas de distância de Rio Preto. Não converso mais com muitas daquelas pessoas que me rodeavam. E embora eu ainda fale com todos, o meu grupo de amigos se separou e não ficamos mais nós quatro rindo de algo idiota numa noite seca e calorenta na varanda. Eu sei que toda vez que eu volto pra minha cidade, no fundo desejo estar voltando pelo menos um final de semana para essas memórias. Mas eu não posso voltar.
Eu posso desejar voltar para lá, para o apartamento de madeira escura, para a visão da minha janela. Mas o meu quarto não tem mais meus livros, meu piano ou meu violão, e a sala com móveis remanescentes da fazenda está vazia e já não recebe mais meus amigos. O vizinho do primeiro andar que brigava comigo pelo barulho finalmente tem paz porque a área comum da piscina e o salão de festas não reverbera as risadas de nenhum de nós. Eu posso desejar voltar pra lá, mas tudo vai estar vazio, porque eu cresci, nós crescemos, e minha vida antiga e meus sonhos adolescentes não existem mais.
A única coisa que existe é a memória. Latente, me assombrando em ondas, em horas aleatórias do dia.
Então, se estou em um navio fantasma, por que não teve um funeral?
Ai